Essa é uma parábola que mostra como somos escravos de nossas escolhas e decisões.
Durante a pandemia do COVID-19, em pleno mês de julho de 2020, eu me via preso no apartamento. Recluso como todos os paulistanos.
As janelas do apartamento se tornaram uma ótima forma de ter contato com o mundo externo. Então, eu –, eu e todo mundo – passava boa parte desse tempo de reclusão, prostrado em alguma janela olhando para o mundo. Assim, a alternativa mais viável era olhar o voo dos urubus, que circulavam sobre os prédios vizinhos, plainando e subindo cada vez mais alto.
A noite era pior! Os urubus iam dormir… O que mais chamava a minha atenção a noite, era a quantidade de luzes acesas nos apartamentos que eu avistava de alguma das minhas janelas.
Claro que isso era uma demonstração clara de quanta gente estava em casa, enquanto as ruas ficavam cada vez mais vazias de pessoas e de carros. Chegavam a ficar desertas após as 23h00min.
Uma daquelas noites, por volta das 23h30min, eu fui à cozinha fazer um chá. Liguei o fogo e enquanto esperava a água ferver, fiquei olhando pela janela. Chovia bastante, uma chuva que não era uma garoa, mas que também não era nenhuma tempestade preocupante.
Naquele momento eu avistei do outro lado de minha rua o Sr. Antonio, um simpático morador de rua que sempre estava nos arredores. Ele era um senhor que devia ter uns 55 anos, porém parecia ter uns 70!
Era nosso velho conhecido e costumávamos – minha mulher e eu – conversar com ele quando fazíamos as nossas duas caminhadas diárias com nossa menina, uma cadela shih-tzu que faz parte de nossa família há mais de 13 anos.
Naquela noite, quando o avistei de minha janela, ele andava lentamente, atrasado pela quantidade de bagagem – tralhas, cobertor e sacos com latinhas de cerveja que ele carregava o tempo todo para qualquer lugar aonde ia.
Sua carga era impressionante, puxava um carrinho com dois sacos grandes, outro saco enorme que ele carregava na outra mão, uma mochila em suas costas que não perdia nada em tamanho para o saco da mão e algumas sacolas penduradas nos seus ombros!
Com toda certeza, ele andava embaixo daquela chuva procurando um local seco onde pudesse passar o resto da noite e se proteger da chuva.
Aquela visão do Sr. Antonio andando sem muita mobilidade, com aquelas condições desfavoráveis de frio e chuva e com toda aquela carga inútil, fez com que um pensamento passasse pela minha cabeça.
Pensei em todas as pessoas, inclusive aquelas que passam pelo meu consultório e não pude deixar de compará-las com o Sr. Antonio. Elas também carregam cargas enormes, só que em vez de sacos, sacolas e um monte de tralhas, são cargas de culpas, remorsos, incertezas, expectativas irreais e mais um monte de inutilidades.
Como o Sr. Antônio, mesmo com toda essa carga, caminhamos procurando um lugar “seco” para poder nos sentir melhor e menos desconfortáveis.
Talvez seja um hábito que esteja ligado a minha condição de psicólogo, porém, mesmo sem nenhum esforço, vivo observando o comportamento das pessoas nas ruas, inclusive dos mendigos e moradores de rua.
Já observei que quando aparece um novo morador de rua, eles vêm de mãos vazias. Em geral chegam nas praças. Então, eu percebo que são novos moradores de rua porque os vejo todos os dias no mesmo local, muitas vezes no mesmo banco da praça sentados e com o olhar vazio.
Normalmente, chegam ainda vestidos com roupas comuns que não denotam sua condição de morador de rua, mas com o passar do tempo, eles começam acumular “bens”. Vão ganhando coisas, cobertores velhos, sacos de ráfia para acumularem latinhas de refrigerantes e cervejas, um agasalho roto, pães, marmitas e outras coisas que vão virando seus tesouros e que eles ficam carregando para cima e para baixo com grande esforço.
Transportando para meu consultório, percebo que é exatamente o que é feito por todos nós, vamos acumulando “bagagens” inúteis que acabam se transformando em crenças nucleares negativas ou disfuncionais, transtornos psicológicos e outras tralhas que atrapalham a nossa caminhada saudável.
Como diz a metáfora estoica feita, há mais de 2.300 anos, por Zenão de Citio:
“Vivemos como um cão que está amarrado a uma carroça que está viajando por caminhos diversos.
Somos impotentes para puxa-la para onde queremos ir, ou fazer com que ela ande quando estiver parada. Também não conseguimos para-la quando ela estiver andando. Então, somos obrigados a seguir atrás ou ao lado dela porque ali dentro está tudo que nos importa. Sendo assim, não há como abandona-la.
Nessa carroça eu vejo todos os “bens” e tralhas psicológicas que levamos conosco. Assim, seguimos a carroça para onde quer que ela vá… Como abandonar tantas coisas que acumulamos durante tantos anos e que, erroneamente, achamos indispensáveis?
Porém, descobri que existe uma alternativa. Podemos mudar de carroça! Podemos ir para outra que poderá ir por outro caminho ou em outra direção. Entretanto, essa mudança implica em levar quase tudo ou tudo que temos dentro daquela carroça que estamos abandonando, todos os nossos “bens” e as tralhas psicológicas e físicas. Além disso, ainda temos que nos adaptar as regras do novo caminho que escolhemos seguir.
Entretanto, o novo caminho pode oferecer novas oportunidades. Poderá ser mais ameno e nos oferecer novas alternativas. E dessas, podemos ou não fazer bom uso.”
Assim, como todos os meus pacientes, eu passei boa parte de minha vida acumulando medos! Culpas! Inseguranças! Dúvidas e certezas absolutas! Medo dos sofrimentos e até de assumir sentimentos que apareceram ao longo do caminho.
Quando cheguei à terapia encontrei, mas não de forma fácil, algumas maneiras de jogar fora as minhas “tralhas” e muitos dos “bens” que eu achava indispensáveis e preciosos, mas que se revelaram verdadeiras crenças inúteis que só atrapalhavam a minha vida e a dos outros.
Troquei de carroça várias vezes. Em algumas acumulei muitos medos, inseguranças e não tive nenhum resultado muito visível e, muitas vezes, acumulei mais tralhas que foram encontradas pelo novo caminho.
Entretanto, persisti no aprendizado. Então, em outras carroças, eu tive bons aprendizados, boas surpresas. Evolui e fui em frente, muitas vezes olhando para trás e comparando-me ao que eu fora antes e conseguindo ver como me tornei melhor.
Porém, minha carroça atual continua viajando firme por caminhos melhores, às vezes inesperados e escuros, mas, com muitas luzes nos finais dos túneis. Luzes que me permitiram e permitem fazer, senão a melhor escolha do caminho, pelo menos achar caminhos pavimentados e menos penosos. Assim, consigo seguir em frente melhorando cada vez mais.
Diante de tudo isso, aprendi a fazer escolhas mais assertivas e me responsabilizar inteiramente por todas elas sem arrependimentos. Sem me culpar e sem colocar a culpa nos outros. Mesmo quando os outros são pessoas que me levaram sutilmente a fazer escolhas inadequadas.
Então, hoje quando vejo alguma de minhas tralhas – mesmo que sejam certezas e convicções – que cultivei durante anos, sendo abandonada ao longo do caminho, eu me vejo plagiando a citação do estoico Zenão de Citio:
“Agora sou um psicólogo que viaja mais leve”
Denival H Couto – Psicólogo e Terapeuta – CRP: 06/17.798-SP
Atendo presencialmente em São Paulo nas zonas sul, oeste e leste e também ONLINE para todo o Brasil e exterior em língua portuguesa. Com 38 anos de experiência nas abordagens TCC – Terapia Cognitiva Comportamental e Terapia Fenomenológica Existencial.
“Meu objetivo é ajudar os meus pacientes a encontrar e quebrar as barreiras que atrapalham o desenvolvimento do completo potencial de cada um, assegurando uma vida mais produtiva, mais confiante, com muito mais qualidade, levando-os ao autoconhecimento, autoaceitação e melhorando a autoestima, assim como à compreensão e aceitação do outro.”
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Infelizmente nossa racionalidade faz com que acumulamos esses sentimentos de culpa, arrependimentos e de nos questionarmos. O que fizemos de tão errado para merecer tais consequências??? As vezes a vida bate com tanta força que é difícil se levantar.
Penso que quanto mais conhecimento ganhamos na vida, mais dura é nossa autocrítica como diz Sócrates “Só sei que nada sei” quando ouvi essa frase….pensei ele estudou muito para concluir que não sabe de nada, e acho que essa é minha vida.
Outro dia vi uma série que o personagem diz “antes eu era mais confiante, achando que estava no caminho certo, hoje sei que não há cominho certo, só pessoas tentando fazer o melhor em um mundo onde é muito mais fácil fazer o pior”
Outras frases me veem a cabeça como a frase do tio Ben do Homem Aranha ” Grandes poderes geram grandes responsabilidades” mas será que se a gente não for um super herói aguentamos tamanha responsabilidade??
Parece que quanto maior o conhecimento maior o tombo, maiores são as consequências….talvez como diz o ditado popular….a ignorância é uma benção e talvez trocar de carroça seja muito difícil. Afinal de contas são cicatrizes e traumas que nos fizeram ser quem somos hoje.
Enfim….talvez Arthur Schopenhauer estava certo quando descreveu o homem com a seguinte frase ” Homem é um macaco cego e robusto que carrega um macaco que aleijado que enxerga”
Seguimos em frente
Bom dia, Jorge! Que ótimo comentário! Parece que você pegou o espírito da coisa… Na verdade, Sartre resumiu tudo isso em duas frases curtas: “Não importa o que fizeram de você. Importa é o que você vai fazer com o que fizeram de você.”
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Fantástica narrativa….. como me encontrei por diversas citações na minha carroça carregada de inutulidades que eu mesma fiz questão de defendê-la acreditando ser a melhor opção prá mim ou para agradar alguém e me sentir importante eu sua vida. Porque?
Esta é uma pergunta que me faço sempre. Porque? Porque? Porque?
Já mudei de carroça, já fiquei muito tempo com uma porém mudando as tralhas, e já tentei pegar carona na carroça do outro trazendo minhas tralhas e sobrecarregando o peso para ambos.
Hoje me vejo numa longa estrada, em minha carroça ainda trago medos, incertezas, e culpas. Medo de encarar algumas situações que necessito de movimentação para mudar o que me incomoda. A verdadeira ação. Sem ela continuo no mesmo lugar e querendo chegar em algum lugar. Difícil né…. mesmo assim, já vejo que só o fato de enxergar isso me trás junto uma responsabilidade que reconheço que somente eu posso e devo continuar e ser protagonista da minha história.
Este artigo maravilhoso como outros que já li aqui me fizeram refletir sobre minhas atitudes. Busco muitas vezes achar um culpado ou aquela velha mania de querer justificar minhas culpas e medos .
Recentemente perdi minha mãe que por 12 anos estive ao seu lado dia e noite, mãe de 8 filhos que num certo momento de sua vida cansada doente foi designada a ser encaminhada a um asilo pois seria o peso muito grande na carroça de seus filhos que a Vida toda ela criou alimentou cuidou enfim. Na época eu tinha minha vida meus amigos dançava numa escola de dança 20hs por semana uma filha com 20 anos na faculdade enfim estava numa fase maravilha vivendo intensamente tudo com muito prazer. Não concordei em ver minha mãe sendo tratada e vista como um fardo e trouxe pra mim a responsabilidade de cuidar dela. O preço era alto demais teria que abrir mão de muitas coisas que adorava para se dedicar a ela mudei de casa. Fui morar com ela em sua casa e com os hábitos costumes e tudo dela deixei a filha a casa a dança os amigos viagens passeios enfim. Mudei o caminho a carroça e tinha que recomeçar de novo.
Fiz por que quis não me arrependo e faria novamente. Com certo tempo percebi que resgatei muitas coisas que havia deixado numa gaveta trancada sem resolver. E conheci uma mãe que não tinha sentido nem visto até então. Construí com ela uma relação de mãe e filha maravilhosa e trouxe qualidade de vida e melhora na sua saúde a fiz sorrir e nos divertimos muito viajamos passeamos fomos em festas conversávamos…. lógico tudo isso dentro de uma condição favorável a sua mobilidade reduzida e com acompanhamentos médicos.
Eu morando em sua casa precisei adequar minha vida compromissos de trabalho a nova condição assumi tudo o inclusive as despesas. E como éramos 8 irmãos a mãe era de todos a casa era de todos inclusive os netos bisnetos e agregados. Foi aí meu erro. Não me posicionei. Trouxe pra minha carroça como uma obrigação o que não era meu. A responsabilidade de cuidar dela sim, mas as tralhas o peso de uma família não.
O que eu fiz mais uma vez. Sobrecarreguei minha carroça. Tive uma postura inadequada e ineficiente não dei um basta quando era necessário e fui explorada por todos porque eu permiti. E doía e mesmo assim não fazia nada pra mudar. Só pensava na minha mãe em cuidar defender e fazer ela se sentir bem e segura. Diante disso abri mão da minha vida e vivi a vida dela por ela. Fui explorada por toda a família. Minha filha era a única que com fortes palavras e até com uma frieza me chamava atenção para acordar e sair daquele enrosco que me encontrava.
Depois de doze anos, com dias bons e ruins, alegres e tristes finalmente ela se foi. Em seu velório era uma mistura de sentimentos. Eu observando a todos me enojava de ver aqueles choros me passava uma vontade de gritar e cobrar….” não ia visitar, nunca levou uma fralda uma frita um abraço ” e agora tá chorando o que?
Ufa. E assim eram meus sentimentos e também trouxe meus questionamentos. Eu não podia nem deveria cobrar nada. Afinal eu fui porque eu quis. Eu fiquei porque eu quis. Eu tive a escolha e se não o fiz certo ou errado. Tinha que assumir a responsabilidade e não cobrar dos irmãos a escolhas deles.
Depois de um ano que ela desencarnou minha carroça estava diferente com novos sacos porém inúteis e eu mais uma vez me vi numa encruzilhada . Troco a carroça troco de estrada ou permaneço e reciclo a carga?
E assim é nossa vida…. se continuar escrevo um livro… e este artigo me trouxe muitas reflexões .
Me fez pensar e perceber que mi-mi-mi não combina comigo.
Quero e serei a protagonista da minha vida, cansei de fazer papel de coadjuvante na história dos outros. Vou viver a minha vida, desconstruir para iniciar uma nova construção melhor, ser resiliente e trazer com o que aprendi e eliminar o que não me serve.
Ao invés de carroça quero caminhar um pouco nesta estrada e observar melhor o caminho e o que nele aparece com detalhes. Como diz no Poema de Itaca – Itaca é o foco a meta a direção o tesouro está no caminho e nele que tenho que apreciar observar e vivência minimamente cada momento.
Obrigada Dr. Deni Couto meu psicólogo.
Dirce Vieira. SP abril 2022
Dirce; sou eu quem agradece pelo maravilhoso comentario seu! Obrigado por contar sua historia ou, pelo menos, sua “aventura” ou “desventura” com essa escolha de acolher sua mãe e por conseguinte, parte de sua familia. A vida é assim, colhemos o que escolhemos e muitas vezes atraimos o que não queriamos. Analisamos e vislumbramos alguns aspectos de nossa escolhas, mas, infelizmente, não temos sabedoria suficiente para prever tudo que virá com elas. Enfim: “Maturidade é viver em paz com aquilo que não se pode mudar”. Forte Abraço!
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